sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Alérgicos

Desde quando Clara começou no processo das alergias, a palavra que eu mais ouço quando falo delas é "tadinha".

"Tadinha", porque ela não pode comer uma bisnaguinha, tomar um refrigerante, comer de forma inconsequente os brigadeiros que não sei como foram preparados.

"Tadinha", porque não pode comer aquele salgadinho de isopor da feira e nem aqueles que vem na embalagem brilhante e metalizada na parte de dentro.

"Tadinha", porque criança deveria ir ao supermercado e poder escolher uma bala, um chocolate qualquer, uma bolacha.

Agora vieram as certezas de outras alergias. Alergias que não são alimentares, e mesmo assim derrubam. Os ácaros. Os gatos. Talvez a massinha. As tintas de cheiro forte. Tantas outras coisas. "Tadinha".

Eu fico me perguntando.

Quando foi que tantas dessas "comidas", coloridas, descartáveis, gordurosas, cheias de açúcar ou sódio - ou de açúcar E sódio -, conservantes, se tornaram sinônimo de afeto? Como foi que isso foi construído na cabeça das nossas crianças eu sei - nós mesmos ajudamos -, mas e nas nossas cabeças? Depois a galera fala que "não tem nada a ver, a responsabilidade não é da publicidade, é da mãe que deixa comer". Eu sou uma mãe que NÃO deixa comer. E ainda assim minha filha se sente deixada de fora porque não pode pegar aquele brigadeiro com granulado verde ou aquela bisnaguinha com presunto, acompanhados de um copo bem colorido de refrigerante laranja. Quando, como, a mando de quem - e, meu Deus, POR QUE - nossas crianças ficaram expostas a noção de que isso é comida DE CRIANÇA?

Eu não tenho pena da Clara por ela não comer essas coisas. Eu nunca quis que ela comesse essas coisas - mas às vezes me faltava voz diante de alguém querido que estava tentando apenas ser carinhoso nos padrões que a gente aprende que deve ser com crianças. Vai visitar? Leva um pirulito... O não da mãe engasgava: "um só". E aí vieram as alergias e eu me senti quase um profeta. Sabia que ela não deveria comer, que não faria bem pra ela, e agora tinha um motivo que me faria peitar quem fosse, sob pena de ser indelicada. "Ela não come, mas muito obrigada pelo gesto".

Eu tenho uma certa tranquilidade pela Clara não comer essas coisas. Acho a alimentação dela invejável - tanto que passei a adotá-la. Consegui em 90%. Estou esbarrando nos 10% das comidas que eu aprendi a interpretar como "de conforto", que só fazem mal pra mim, que só me deixam mais pra baixo quando eu termino de comer e percebo que não só não resolvi meu problema como coloquei um monte de toxinas pra dentro do meu organismo. E vejo os reflexos desse caminho. Mesmo diante dos brigadeiros liberados, feitos para ela e com os ingredientes que ela pode, Ana Clara por vezes come um e me diz no ouvido, "na geladeira tem goiaba. Eu quero goiaba!". Teve o caso inclusive de chorar porque o que tinha era uma GOIABADA, que a mamãe ganhou pra rechear um bolo, e ela achou que era a fruta. Lágrimas. Vi lágrimas porque tinha o doce, mas não tinha a fruta. Problemas de primeiro mundo.

Mas ainda assim tem horas que eu me pego pensando, sobre a Clara, "tadinha".

Vai ter aniversário na escola e ela vai ficar exposta a tudo que não pode comer, e vai se sentir ainda mais "the odd one out", a diferente, a fora do padrão.

Ou vai ter algum outro evento e ela vai ver um monte de coisas que eu não vou poder deixar ela comer.

E muitas vezes ela não vai nem pedir.

E às vezes, mesmo se eu descobrir que tem alguma coisa que ela pode, não vai nem aceitar - porque aprendeu a desconfiar, aprendeu que o mundo traz um monte de surpresas nas suas comidas, surpresas que para ela normalmente não são muito boas.

E às vezes ela vai pedir, vai me dizer "vamos fazer um teste!", e vai ficar borocoxô quando eu disser que já fizemos o teste, que ela sabe que não dá certo. Lembra? Ela lembra. Faz um biquinho, abaixa o olhar, me abraça, fala num sopro chorado "...eu queria tanto!".

Para me consolar, as pessoas falam que ela vai crescer e vai passar.

Eu me desafio todos os dias a acreditar que sim, ela vai crescer e vai passar. Mas não porque vamos depender da alergia ceder. Ela vai crescendo a cada dia, e a cada dia vou tentando ensinar a ela o que é viver em sintonia com seu corpo e com o mundo. Vou tentar ensinar cada vez mais de onde vem essas coisas que fazem mal não só pra ela, mas para todos nós, e porque é o melhor caminho optar por não comê-las. Vou tentar mostrar a ela que essas alergias foram, sim, um atropelo, mas como toda dificuldade vieram apenas para nos tornar mais fortes e mais cientes das nossas escolhas. Melhores. Tenho fé que como eu, que até poderia comer, que cresci comendo, que achava muitas dessas coisas uma delícia, ela não vai nem querer. Tenho fé e garra. Estou trabalhando pra isso.



Há mais ou menos um ano, não como salgadinhos.
Há mais ou menos um ano, não como enlatados.
Há um ano sem bolachas recheadas, fugindo de todas as outras bolachas que as vezes cruzam o caminho.
Há mais de seis meses, sem embutidos - confesso as ocasionais três rodelinhas de linguiça nos churrascos.
Há mais ou menos um mês no caminho de reduzir o açúcar por adição.
E só me sinto melhor. Mais saudável. E sei que meus filhos também estão.


As pessoas tem pena dela, pena do irmão que talvez também seja alérgico. Pena dos meus filhos. Tadinhos.
Mas eu sei que eles, Clara e Lucas, mesmo neste caminho inesperado que se mostraram as alergias, continuam como sempre sendo sol, para iluminar nossas escolhas. Nossa vida.



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Por quês

De todas as coisas que eu imaginava que Clara poderia me perguntar sobre o desfile das escolas de samba, na TV, nem passei perto disso:

- Mamãe, é isso?
- É isso. O desfile é esse. As pessoas, os carros alegóricos... É meio isso, mesmo, filha.
- Hum.
- É chato?
- Não. É legal. (entusiasmo zero. haha).
- Se você não quiser ver, não precisamos.
- Não, é legal.
- ...
- Quem é o chefe?
- Chefe? Filha, sabe, não tem bem essa coisa de hierarquia, não. Não tem chefe.
- Então todo mundo é o chefe?
- Não. É mais, assim, ninguém é o chefe.
- Hummm... (desconfiadíssima).


Depois de algum tempo, mostrando uma foliã aleatória:
- Mamãe, como ela chama?
- Filha, não sei.
- E essa? (mostrando outra)
- Mamãe também não sabe. Tem cinco mil pessoas, filha. Não vai aparecer o nome das cinco mil que estão desfilando só nessa escola.

Em tempo: não sei se são cinco mil, mas são muitos mil. Generalizei.

Nessa hora apareceu a madrinha de bateria, dona Fulana. Aí falei:
- Olha, essa aí apareceu o nome. É a dona Fulana, e ela é a madrinha de bateria.
- Nossa, que linda! Que fantasia linda! (tudo verdade).
- É, né, filha? Também achei.
- Mamãe...
- Eu.
- Por que você não foi assim, no Carnaval?


Tá decidido. Ano que vem vou de madrinha de bateria. ^^



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Daqui da Oca

Desde a Clara chegar eu me aproximei desse grupo, o grupo que se autointitula, ironizando como o mundo nos vê, "azíndia". As índias. Porque eu queria parir (não rolou), amamentar (tá rolando) e outras coisas assim.

E aí a Clara foi crescendo e eu também estava meio pra isso na alimentação, sem porcarias. Nas fraldas - ela teve assaduras, dá-lha fralda de pano.

Depois as alergias alimentares que dramatizaram tudo - nada com corante, conservante, nada industrializado. Segura o açúcar, a gordura, o negócio é fazer salada de frutas e ser feliz.

Chega o Lucas e eu continuo aí, com o peito de fora, ouvindo que "ele é muito grande pra mamar!" e outros blá blá blás sem nenhum embasamento científico e muito desrespeito pela convicção alheia.

E agora o Lucas tem alergia da fralda. Alergia, mesmo, nível "ai, não vai dar pra ficar de fralda!". Lá vamos para uma semana de fraldas de pano. E a alergia está sumindo.

Se eu sou índia, fica aqui meu respeito a esse povo conectado com a terra e mais próximo de Deus. Que prazer seria ser um deles - que orgulho representá-los nas minhas escolhas e atitudes.

Pode vir visitar.

Aqui na oca tem tapioca fresquinha e suco da fruta. Capaz de em breve a gente começar a plantar, porque a mamãe bem já anda dando preferência para o setor de orgânicos na feira. A gente prefere os pequenos produtores. A gente prefere roupa que demora pra fazer, com agulha e linha. A gente prefere tentar se reconectar à terra, na esperança da Terra durar mais. Bora?