quinta-feira, 6 de março de 2014

Monstros

Às vezes fico pensando que não sou uma mãe que senta e brinca todos os dias, e como eu gostaria de fazer isso. Toda a ideia de ser mãe jovem era meio isso, afinal, ter fôlego e disposição para brincar com a minha filha. Então ontem cheguei do trabalho, nós jantamos, e eu peguei a caixa de blocos para brincar com a Ana Clara. Fizemos uma casinha de bonecas.

Mas aí, lá pelas tantas, ela começou a desmontar e montar uma parte da casa, e eu na bagunça, ajudando a desconstruir. O pai, deitado no sofá depois da meia garrafa de vinho que acompanhou o bobó de camarão da quarta de cinzas, também passou a participar - e logo a nossa casinha, que tinha porta, janelas e mezzanino, virou um monte de pecinhas espalhadas pelo chão da sala.

E, de repente, sem que soubesse muito bem como aconteceu, eu e Clara estávamos de pé, e o Rafael também, já com a voz transfigurada e correndo atrás de nós pela penumbra da casa. Ele nos perseguia pelos cômodos enquanto eu e Clara tentávamos ficar em silêncio, desviar dele, dar a volta e sair correndo para outro quarto, para a cozinha, para a sala. Às vezes ele nos alcançava e nos enchia de cócegas, as duas, e então eu era "contaminada", virava o monstro, e ele saía para se esconder com a pequena e protegê-la de mim. Acho que ficamos nisso uma hora, rodando a casa, caindo no chão de tanto rir, escondendo do Monstro da Cosquinha, acendendo e apagando as luzes num festival pirotécnico. Lá pelas tantas, enquanto fugíamos do monstro pai, tentei segurar a Clara, que ia depressa demais, mas mesmo assim a cabeça dela resvalou no batente da porta. Eu me preocupei imediatamente: de que ela tivesse se machucado, que irrompesse no choro, que a nossa brincadeira acabasse em tristeza. Mas ela simplesmente se aproximou de mim e disse num sopro sussurrado, "desculpa, mamãe" - porque aquela batida nos denunciaria, o monstro seguiria o seu som. "Você está bem, filha?", eu perguntei. E ela se virou pra mim mais uma vez, o dedo nos lábios, "shiiii". Silêncio. O monstro vai te escutar.

Ontem, eu e Clara e o pai dela nos perdemos nesse universo mágico que existe colado ao nosso, em que tudo é igual e completamente diferente. A mãe é bruxa, o pai é monstro, e os beijinhos da filha são o antídoto para que eles sejam pai e mãe de novo. Nós gritamos e corremos e caímos no chão, sugados nessa mesma dimensão, dispostos a simplesmente imaginar uma aventura. Mas no final, nem sei se imaginamos - porque nos deitamos, os três exaustos, no chão do corredor, respirando sonoramente e recobrando forças. O pai levantou, depois ela, e me chamou. "Mamãe, vamos dormir?". Vamos, filha. Como você mudou minha vida. Me mudou. E, do meu lado, me deu um abraço apertado. "Você era um monstro, mas eu beijei você, e você acordou". E não é que é quase isso, mesmo?

Um comentário:

  1. No final era pra chorar mesmo, não era? Porque foi assim, envolvente, emocionante e doce! Era como estar lá, vendo tudo com o olhar cheio de ternura e um sorriso satisfeito por tanto amor! A Cacá tem o dom de nos transformar com cada gesto singelo, cada beijinho mágico! E podia ser adsim com todo mundo, não é? Cada monstro se inundando de bondade por ganhar um beijo: abaixem as armas, embaiem as espadas, dêem um beijo de ternura no dragão que ele te ajudará a salvar o povoado! Seria sonhar muito?

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